A descoberta de gravações telefônicas mostrando uma complexa rede de relacionamentos comprometedores dá a sensação de que
o futebol italiano pode mergulhar no maior escândalo de sua história. Um título que, por enquanto, é do Totonero, uma crise
que foi capaz de levar de roldão jogadores da seleção italiana e até grandes clubes como Lazio e Milan.
O caso começou de maneira discreta em 16 de janeiro de 1980. Em uma reportagem publicada no jornal de orientação comunista
"Paese Sera" denuncia a existência de uma rede de apostas clandestinas na Itália. Uma espécie de loteria esportiva paralela
comandada por três pessoas (cujos nomes não foram apresentados em um primeiro momento) e que, na temporada 1978-79, havia
obtido grandes lucros.
Em cada rodada, o Totonero (nome como ficou conhecida essa “loteria”, uma junção de “Totocalcio”
– nome da loteria esportiva oficial italiana – com “nero”, “negro” com sentido de clandestino)
abria apostas para uma partida. Dessa forma, havia poucos envolvidos no jogo e ficava mais fácil para os comandantes da operação
subornar pessoas que pudessem manipular o resultado.
O esquema começou a fraquejar quando os próprios jogadores contatados começaram a fazer jogo duplo. Aceitavam o suborno
e ainda apostavam na loteria para aumentar seus lucros. Em alguns casos, faziam o contrário, apostando o contrário do que
foram orientado a fazer para “cercar” o jogo e ganhar mesmo se não conseguisse entregar a partida.
De qualquer maneira, um escândalo de manipulação de resultados tende a ser bombástico na Itália. Independentemente da lisura
do esporte, esse tipo de caso afeta diretamente os resultados do Totocalcio, já naquela época uma mania dos italianos e que,
por isso, envolvia milhões de liras a cada semana. A sobrevivência desse quase bem cultural dependia da resolução rápida e
definitiva do problema.
As investigações da Justiça italiana e a Federcalcio (federação italiana) rapidamente dão resultado e, em março, já são
conhecidos os nomes de diversos envolvidos. Entre os jogadores, havia nomes importantes como o do goleiro Albertosi (vice-campeão
mundial pela Azzurra em 1970), o defensor Manfredonia e os atacantes Giordano e Paolo Rossi. No todo, 27 jogadores
de sete clubes – Avellino, Bologna, Lazio, Milan, Napoli, Perugia e Vicenza – participaram do esquema. Vale dizer
que o Milan conquistara o Campeonato Italiano de 1978-79 (foto), justamente a temporada que estava sob suspeita.
O processo foi acelerado depois da prisão de dois dos organizadores do Totonero, Alvaro Trinca e Massimo Cruciani. Trinca,
dono de um restaurante onde jogadores se reuniam para acertar os resultados, se sentiu traído pelos que não respeitaram os
acordos e revelou quais partidas tiveram seu resultado adulterado. Cruciano apresentou provas – inclusive cheques para
o pagamento pelos “serviços” prestados – que ligavam os atletas ao esquema de corrupção. Nesse momento,
a lista de atletas e dirigentes aumenta ainda mais, mostrando como a crise era profunda.
A Justiça determinou a prisão de 48 pessoas: 36 jogadores, um diretor técnico e quatro presidentes de clubes (Bologna,
Juventus, Milan e Lazio). A forma como a ordem foi cumprida teve ares cinematográficos. Em 23 de março de 1980, após as partidas
do Campeonato Italiano, a polícia entrou nos estádios de Avellino, Gênova, Milão, Palermo, Pescara e Roma para prender vários
jogadores – Albertosi e Morini (do Milan), Manfedonia, Cacciatori, Wilson e Giordano (Lazio), Magherini (Palermo), Girardi
(Genoa), Merlo (Lecce), Della Martina e Zecchini (Perugia) e Pellegrini (Avellino) – além de Felice Colombo, presidente
do Milan. Todos são encaminhados para uma penitenciária de Roma. Além disso, outros jogadores, como Paolo Rossi e Giuseppe
Dossena também são ligados diretamente ao caso.
Com o pagamento de fiança ou decisão judicial, os envolvidos não ficaram muito tempo na prisão. Porém, a comissão de investigação
da Lega Calcio recomenda o banimento dos jogadores do futebol e o rebaixamento do Milan para a Serie B. A decisão não foi
exatamente essa, mas se aproximou: Felice Colombo, Albertosi e Cacciatori são excluídos do futebol para sempre; outros jogadores
foram suspensos por cinco anos e outros por três (caso de Paolo Rossi) ou um e meio (Giordano). Entre os clubes, Milan (terceiro
colocado no campeonato de 1979-80) e Lazio foram rebaixados, enquanto que Avellino, Bologna e Perugia iniciaram o campeonato
seguinte com -5 pontos.
O escândalo teve grande impacto no futebol italiano. Em junho de 1980, a Itália sediou a Eurocopa e, devido ao clima pesado
e às ausências de Rossi e Giordano, realizou uma campanha patética. Venceu a Inglaterra e empatou com Bélgica e Espanha, perdendo
a vaga na final para os belgas. Na disputa do terceiro lugar, caíram nos pênaltis diante da Tchecoslováquia.
Na temporada seguinte, o Milan dominou a Serie B e conseguiu retornar rapidamente à elite. Porém, a crise institucional
deixara marcas profundas e, com dificuldade de se reerguer, os rossoneri foram novamente rebaixados. Dessa vez, em
campo. O time só teve condições de recuperar seu status após a compra do clube por um emergente empresário da construção civil:
Silvio Berlusconi.
Com a apelação dos condenados, as penas foram atenuadas. Albertosi e Cacciatori tiveram o banimento perpétuo convertido
em suspensão de, pela ordem, quatro e cinco anos. Rossi ficou com apenas dois anos de suspensão e pôde retornar a tempo de
disputar a Copa de 1982. Ainda assim, sua convocação por parte do técnico Enzo Bearzot foi muito contestada, até porque o
artilheiro do Campeonato Italiano, o romanista Roberto Pruzzo, fora preterido na lista de convocados.
Apesar de boa parte das punições terem sido pesadas, ficou enraizado no imaginário do torcedor italiano que o futebol é
um esporte de resultados manipulados. E os fatos não ajudam, pois periodicamente surgem escândalos de suspeita de arranjo
de resultados. O mais recente, de tão grave, é capaz de superar até o que é até hoje considerada maior crise da história do
futebol italiano.
Que fique claro que o Totonero está longe de ser o primeiro escândalo de manipulação de resultados do futebol italiano.
Por exemplo, em 1926, Luigi Allemandi, da Juventus, foi acusado de aceitar suborno antes de um clássico contra o Torino. O
título italiano que os granata conquistaram em 1926-27 foi revogado.
Vale dizer que, em janeiro de 1980, a Lazio (um dos clubes mais comprometidos no escândalo Totonero) mudou de diretor esportivo.
O novo contratado: Luciano Moggi. Não que ele tenha algo a ver com o Totonero, mas é uma coincidência curiosa.